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Inédito Viável

Fui buscar meus sogros, em Vila Isabel, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Para evitar o trânsito, entrei numa rua paralela. Cem metros adiante, fui obrigado a parar: no meio da rua, um garoto franzino, aparentando uns 15 ou 16 anos, impedia nossa passagem. Na mão, portava uma enorme pistola cromada. Parei o carro. Ele se aproximou. Serenamente, examinou quem estava no seu interior. Depois, afastando­se alguns passos, deixou­nos prosseguir.

Aquele menino, a quem os traficantes da favela Morro dos Macacos confiaram tamanha responsabilidade, é um líder natural. É inteligente, tem discernimento, é capaz de tomar iniciativas.

Para alguns, ele deveria estar na cadeia. Alguns anos mais tarde, com especialização dessa escola do crime, ele sairia muito pior do que teria entrado e, provavelmente, sem outra perspectiva que não a de reincidir no crime, como acontece com 70% dos egressos, parte significativa dos 527 mil presos que superlotam nossas masmorras. O sistema que nos tornou o terceiro país com maior população carcerária do mundo quer agora mandar para a cadeia jovens mal entrados na adolescência. Jovens que já foram punidos pela nossa indecente desigualdade social e por várias outras formas de exclusão, características da sociedade de consumo em que vivemos.

Para outros, esse adolescente deveria estar na escola ­ uma escola pública, criativa, prazerosa, com qualidade. Uma escola onde professores dedicados o estimulariam a descobrir, expressar e desenvolver seus talentos ainda desconhecidos. Mais do que isso: a escola lhe daria condições de conhecer e de se assenhorear de seus direitos e deveres de cidadão, baseados em princípios éticos, de solidariedade e de justiça. Tornar essa escola uma realidade é possível, desde que seja uma prioridade de todos. E por que não seria? Chega-se lá através de um processo que Paulo Freire, grande criador de expressões, chamava de “inédito viável”: inédito, pois nunca foi tentado antes; viável, porque podemos, somos perfeitamente capazes de realizá-­lo.

Há um sem número de pronunciamentos contrários à redução da maioridade penal, de organizações como a OAB, a Associação de Magistrados Brasileiros, a CNBB, o Unicef, e também de redes, que compõem o que se convencionou chamar de sociedade civil organizada. Este é o caso da Rede Nacional Primeira Infância, composta de mais de 170 organizações que se empenham em tornar realidade o que determina a Constituição brasileira: prioridade absoluta à atenção a crianças e adolescentes.

Fica no ar a pergunta: por que os deputados que acabaram de aprovar em segunda votação a mudança que altera a Constituição no capítulo de direitos, passando a determinar o rebaixamento da maioridade penal, não consideraram o que é consenso na maioria dos países, não ouviram essas opiniões qualificadas, unanimemente contrárias à medida? E há outras perguntas que precisam ser respondidas: Quem são esses deputados? Qual é a história de cada um deles? Que qualificação possuem para legislar sobre uma questão de tamanha importância? Quem financiou suas campanhas? A que interesses servem, depois de eleitos?

As respostas poderiam ser dadas pelos meios de comunicação, cuja responsabilidade é imensa. Deles se espera que deem mais espaço aos vários ângulos de questões complexas como essa, para que, bem informados, possamos todos chegar às nossas próprias conclusões, sabendo quais interesses estão em jogo, o que se esconde por trás de discursos moralistas e hipócritas, que se aproveitam da ingenuidade e da boa fé dos que buscam soluções para os problemas com que se defrontam. Quando não agem com a isenção que deveriam ter, quando sonegam informações e, defendendo interesses próprios, se transformam em verdadeiros partidos políticos de discurso único, os meios de comunicação perdem credibilidade. Seus leitores sabem que o jornal, o radio ou a televisão que leem, ouvem ou assistem, tem seu viés. Num jornal, a posição se expressa em seus editoriais. Mas quando não abordam adequada e transparentemente questões de grande importância, pelo que significam, pelas suas possíveis consequências, pelo seu alcance e implicações éticas, ou sonegam essa informação, lesam seus leitores. Eles acabarão se dando conta disso. E, se não podem confiar no que leem, veem e ouvem, sua fidelidade ficará abalada. Passarão a buscar informações em outras fontes. Isto significa, para a mídia tradicional, que ela já não mais possuirá o antigo poder de atribuir significado aos fatos, de ser formadora de opiniões.

As outras fontes estão nas redes sociais, mais acessíveis, mais ágeis, que representam, em suas expressões mais consequentes, novas formas democráticas de participação cidadã. Elas respondem à demanda da sociedade que exige mudanças e deseja o aperfeiçoamento do regime democrático, tão duramente conquistado e hoje tão ameaçado de impensáveis retrocessos por carreiristas irresponsáveis. É necessário superar situações como a que vivemos neste momento, em que certas figuras da Câmara e do Senado localizam­se entre o Código Penal e o manual psiquiátrico, no dizer do escritor Marco Lucchesi.

Na democracia que queremos, a luta é travada pelas ideias e pelo convencimento, pela razão e pela ética, e não pelo autoritarismo de um grupo eleito com financiamento de empresas de armamento ou de seguradoras de planos privados de saúde, para citar apenas dois exemplos da origem dos que acabam de votar pela redução da maioridade penal.

Pretendem ter respondido a uma opinião pública que surge das pesquisas de opinião? Opinião pública desinformada, iludida ou envenenada, que reage sem ter tido a oportunidade de ponderar e refletir amadurecidamente? Ou estarão atendendo a segmentos que lucram com uma sociedade caracterizada por crescentes conflitos armados? Haverá nesse voto alguma influência de grupos que veem com avidez a perspectiva de privatização das penitenciárias que terão de ser construídas para abrigar as centenas de milhares de jovens que nelas serão enclausuradas? E como não falar na bancada que se diz “evangélica”, na qual não se vê traço algum dos ensinamentos cristãos que pregam a fé na redenção do ser humano, o perdão, o amor ao próximo?

Ensinar, em vez de prender. Implementando, integral e diligentemente, o que propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, saberemos, pela experiência, como aperfeiçoá-­lo. Ao cuidar prioritariamente das crianças pequenas e da melhoria de suas condições de vida, teremos de tomar decisões que não podem esperar, enfrentando questões prioritárias: como garantir qualidade em educação, lazer, esporte, bens culturais, saúde, saneamento básico e ambientes mais saudáveis.

O desafio é criarmos cidades melhores, com oportunidades para todos, planejadas não a partir de interesses meramente especulativos, como estamos testemunhando, mas com base na participação efetiva de todos os que nelas vivem, crianças inclusive. Experiências internacionais de participação de crianças no diagnóstico, planejamento e implementação de mudanças que afetam seus ambientes têm sido corroboradas entre nós. Elas precisam ganhar escala, tornar-se política pública. Dessa maneira, estaremos formando cidadãos de um Brasil melhor, mais justo, mais democrático, capaz de viver e de ensinar valores éticos pelo exemplo.

Claudius Ceccon, é Coordenador da Secretaria Executiva da Rede Nacional Primeira Infância e diretor executivo do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular

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